Já entrando no clima da Copa da Rússia que começa nesta quinta – feira, o post de hoje vai falar sobre a relação dos torcedores uruguaios com o maior evento do futebol mundial. Se por aqui no Brasil, estamos meio desanimados com o time canarinho, após o traumatizante 7 a 1 contra a Alemanha, no nosso vizinho Uruguai a situação é bem diferente. A empolgação com a equipe celeste é sempre forte, ainda mais neste ano, após uma ótima campanha nas Eliminatórias. Outro dia li um artigo do psicólogo, jornalista e escritor uruguaio Agustín Acevedo Kanopa no New York Times em espanhol, e achei muito interessante a análise que ele fez sobre como o torneio afeta os ânimos de toda a população de quatro em quatro anos e sobre o conflito psicológico que a população e também os atletas travam em relação à sua amada seleção. Resolvi fazer a tradução e compartilhar com vocês, confiram no texto abaixo 😉
Uruguay e su extraña neurosis futebolística
O Uruguai está às vesperas de jogar seu terceiro mundial consecutivo e nós psicólogos estamos preocupados. É uma conversa que temos a cada quatro anos: quando a seleção começa a ir bem, os pacientes se sentem melhor, conectam cabos soltos de seu desejo, são alcançados por pequenas epifanias ou adquirem a coragem para tomar uma decisão a um longo tempo adiada.
Mas, sobretudo, se sentem melhor: melhor com seu país, melhor com seu par, com seu chefe, consigo mesmos. À sombra dessa nova felicidade, nós psicólogos começamos a parecer desnecessários.
Duas empresas de eletrodomésticos de Montevidéu enfrentam uma situação similar. Campanhas publicitárias de ambas anunciam que em cada compra de uma televisão de plasma, se a seleção chega à semifinal, será reintegrado ao cliente a metade do dinheiro. Mas a expectativa é tanta que uma delas (Barraca Europa) estendeu a promoção para todos os produtos que tem a venda, enquanto a outra (Multi Ahorro Hogar) dobrou a aposta e promete cem porcento de reembolso se o Uruguai sai campeão. As vendas não param de crescer.
Pouca, pouquíssima gente acredita que podemos sair campeões. No entanto, quando se trata da seleção, a pessoa aposta por ela como quem joga na Mega Sena: não movido pela certeza ou pela esperança de que vai ganhar, mas pelo medo de descobrir que saíram os números que ela se esqueceu de jogar nessa semana.
Ainda se deixamos de lado a loteria do campeonato, algo mudou nesta última edição. Pela primeira vez, há adolescentes que praticamente não se lembram de ter tentado preencher um álbum Panini sem figuras da Celeste. Com sangue, suor e lágrimas, mas classificados ao fim.

Para os nascidos nos anos 80, a história — ainda a atual — joga com a lembrança traumática dos anos 90, o canibalismo institucional da Associação Uruguaia de Futebol daqueles anos, com problemas contrastantes, dispensas de técnicos, insubordinação de jogadores e campanhas falhas. O gosto amargo de ver um Mundial tendo que torcer por outras equipes.
Há coisas mais estranhas. Nos descobrimos, pela primeira vez em muitíssimo tempo, classificados com folga, sem termos que sentar naquele incômodo lugar chamado repescagem. Uruguai: praticamente classificado na penúltima data, segundo na tabela de posições durante quase todas as eliminatórias, quase invicto em seu próprio Estádio Centenário, salvo o penoso 4 a 1 contra o Brasil.
É difícil separar as neuroses individuais de uma uruguaice mais ampla e colectiva, mas uma vez e outra, falando entre a gente — os torcedores — acostumava escapar algo: Durante as Eliminatórias estivemos esperando uma catástrofe que nunca chegou.
O começo das Eliminatórias não podia ser melhor: um histórico 2 a 0 frente a Bolívia na altura de La Paz, acompanhado de uma sucessão de surpreendentes goleadas no Centenário. Tudo isso sem Suárez (que cumpria sua longuíssima suspensão após a mordida em Giorgio Chiellini no Mundial passado. O Campeonato seguiu rodada a rodada, o Uruguai se alternava entre o primeiro e segundo lugar. Havia algo suspeito ali. Houve certos momentos de incerteza, como quando a Celeste perdeu três partidas em sequência, mas foi tão grande a colheita na primeira fase, que as reservas davam para três invernos nucleares.
De isso se trata, em definitivo, a neurose: um estranho culto individual que leva a estar o tempo todo encontrando sinais de uma possível desgraça. Porque, em que momento se gesta o gol contrário? O certo é que estas desgraças estão prescritas em jogadas muito mais insignificantes: uma bola mal passada, uma falta erroneamente cobrada na metade do gramado, uma série de segundas bolas perdidas. Inevitavelmente ficamos traçando no ar uma fórmula sinistra.
Agora o que acontece quando esse mesmo medo forma parte do sentir e do estilo de jogo de um país inteiro? Talvez seja uma benção e uma maldição nascida do Maracanaço: O Uruguai se sente mais cômodo sendo aquele país de quem não se espera nada, um boxeador que se encontra preso entre as cordas e os punhos do adversário. Se esta situação não chega, a Seleção dá um jeito de colocar-se em apertos e buscar como um estranho sistema de auto-regulação, a impossibilidade de vencer (e assim se levantar).
Prova de sobra foi o que aconteceu na última Copa: em um grupo dificílimo, formado por Costa Rica, Inglaterra e Itália, o Uruguai estreia com uma derrota de 3 a 1 com a Costa Rica, aparentemente — o rival mais simples, para logo depois se ver obrigado a ganhar de 2 a 1 da Inglaterra e depois vencer a Itália por 2 a 0.
As confusões em que se mete a seleção são o mesmo combustível que a mantêm funcionando. Uma espécie de vício épico, citado e reinventado a cada passo, ainda quando não parece haver obstáculos à vista.
Por isso, a Celeste sempre leva sua autodestruição atada ao pé, fazendo de seus malabarismos um autêntico estilo. Em tempos regidos pelo paradigma do estilo de jogo espanhol, no qual a posse de bola é tudo, a Celeste foi uma das pouquíssimas equipes medianamente exitosas que seguiu necessitando desprender-se da pelota, deixando a outra equipe marcar o ritmo do jogo.
Na arena do trágico, o Uruguai sempre soube rebelar-se frente a seu destino, mas nunca soube — nunca quis — escrever-lo. A lista de rivais na primeira fase do Mundial, pela primeira vez, em muito tempo, parece acessível: uma Rússia organizada, mas bastante dizimada em seus partidos de preparação: uma Arábia Saudita volátil, um Egito que volta, depois de muitíssimos anos, liderado por Mohamed Salah.
Há uma frase poderosa no filme “Do crepúsculo ao amanhecer: Eres tão perdedor que nem sequer se das conta quando já tens ganhado”.
O Uruguai, essa ilha melancólica e ateia em um mar de países cristãos, um dos poucos países com uma maior quantidade de psicólogos por cabeça, mas por outro lado historicamente associado aos primeiros postos de suicídios da região, protagonista de proezas futebolísticas como poucos, enfrenta a possibilidade de poder ganhar sem seu vício épico. De ganhar de forma natural, sem apertar os dentes, ou televisores como prêmio. Será questão de ver o quão prisioneiros somos de nossos próprios mitos, e de como aprender a traçar nosso destino sem os pés dos outros.
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