A América Latina é, infelizmente, uma das regiões mais violentas do mundo. A pobreza e a desigualdade social são fatores que estimulam jovens a se integrarem à facções criminosas brasileiras e às pandillas ou maras como são conhecidos esses grupos em outros países latinos. As pandillas têm origem nos Estados Unidos, mas logo se espalharam por diversos países americanos, modificando sua forma de atuação conforme a região em que estão inseridas.
Pedro Gallego Martínez, autor de um livro sobre o tema, define a pandilla como um “agrupamentos de jovens de ambos os sexos, que se unem com a finalidade de controlar um bairro ou um território e fazem do pertencimento ao grupo uma forma de vida que lhes leva a cometer qualquer tipo de delito e inclusive perder a vida”. Martínez afirma ainda que três são as saídas para o que os jovens pandilleiros chamam de “la vida loca”: a prisão, o hospital e o cemitério.
O domínio sobre o território é o fundamento de todas as ações. O uso de uma linguagem própria, pichações e tatuagens são meios de identificação não só de seus membros, mas das áreas pertencentes a cada uma das gangues.
Dentre os fatores de surgimento ou expansão das pandillas estão: processos de exclusão social, cultura da violência, crescimento urbano rápido e desordenado, desorganização comunitária, dinâmicas violentas e dificuldades de construção da identidade pessoal. Muitos jovens procuram esses grupos para se sentirem parte de algo maior. O financiamento de tais grupos vem de fontes diversas, como a extorsão, o tráfico de drogas e o sequestro.
Um estudo da Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado (Cear) sobre o tema afirma que “a força com que tais grupos se implantam e crescem pegou as autoridades centro-americanas desprevenidas. Os governos só se conscientizaram da dimensão do problema quando a criminalidade aumentou drasticamente e o controle das maras sobre os bairros já era um fato consolidado.”
Se trata de um problema complexo, e por tanto, difícil de ser solucionado. A resposta dos Estados às pandillas costuma ser reativa e repressiva. Em El Salvador, a política de repressão às gangues conhecida como “mano dura” fez com que a população carcerária dobrasse em quatro anos. O encarceramento em massa contribuiu para que as maras se fortalecessem ao arregimentar novos membros. A divisão das prisões por gangues fez com que os grupos pudessem se organizar ainda mais, passando a comandar suas ações mesmo detrás das grades.
Em El Salvador, um acordo de paz entre a Mara Salvatrucha e o Barrio 18, mediado pela Igreja Católica, Organização dos Estados Americanos (OEA) e sociedade civil, fez com que a taxa de homicídios despencasse. A “paz” durou pouco. Com a mudança de governo e a volta de uma política de segurança voltada para o confronto direto, os índices dobraram, tornando El Salvador o país mais violento da América Central.
O Equador, no entanto, está na contra mão de seus vizinhos e resolveu adotar uma postura diferente para enfrentar esse problema: legalizar a atuação desses grupos.
O processo
Ana Rodríguez, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e ministra da Cultura em 2016, foi uma das promotoras do processo à época.
“Para evitar abusos e reivindicar a vontade de evitar ações violentas, começamos a promover a legalização”, explica.
Rodríguez diz ter sido fundamental o apoio do governo e da polícia do Equador – o que incluiu a disponibilização, para os “pandilleros”, de centros de apoio e treinamentos para o mercado de trabalho.
“Não foi preciso convencê-los. Foi uma vontade mútua acabar com a discriminação contra eles”, revela Rodríguez.
Um exemplo aconteceu com Os Latin Kings (ou “Reis e Rainhas Latinos”) que são agora a Kings Catering, uma pequena empresa do ramo gastronômico.
Essa é uma das gangues que está prestes a completar 11 anos de idade como organização “legalizada” no Equador, parte de um processo sem precedentes no país que contribuiu para uma redução em mais de 70% nos homicídios.
Agora a coroa de ouro remete a comida de qualidade. Em pouco mais de uma década, as cores amarelo e preto, combinadas com uma coroa de ouro como símbolo, passaram a ganhar novos significados nas ruas de Quito, capital do Equador. Hoje, as roupas características dos jovens da Latin Kings já não remetem mais ao medo ou à ilegalidade.

Não foi uma caminhada fácil, mas os resultados obtidos em dez anos já são destacados por organizações internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
A entidade destaca que o programa teve influência significativa na redução da violência local. Segundo dados do BID, os assassinatos no Equador caíram de 15,35/100 mil habitantes em 2011 para 8,17 em 2014 e uma taxa próxima a 5 em 2017 – no Brasil, essa taxa é de cerca de 30 homicídios por 100 mil habitantes.
A difícil transição
Manuel Zúñiga é o “Inca”, isto é, o presidente dos Latin Kings. Seu nome é King Majestic entre os “pandilleros” – como são chamados membros desses grupos marcadamente jovens, informais e vinculados a determinadas regiões.
No passado, ele aprendeu a usar armas, roubar veículos e viver na prisão; hoje, ele é o representante legal de sua “pandilla” (ou “nação”, como chamam em alguns casos) e trabalha na Universidade Católica de Quito, uma instituição privada, com um escritório e tudo mais.
Ele não utiliza mais suas antigas calças largas, mas continua a vestir com orgulho as cores de seu grupo e colares que ganhou como líder.
“Inca” também não esconde suas tatuagens e explica que cada uma simboliza os valores de seu grupo ou suas experiências pessoais.
“Nossa transição foi graças à união e à maturidade de todos nós. Não foi fácil, mas foi o de mais positivo para a nossa nação”, explica o líder.
Zúñiga acrescenta que os “reis e rainhas” estavam “cansados de tantos abusos e discriminação”.
Mas “foi muito difícil convencer os irmãos porque vivíamos em um mundo de violência”, diz.
“Agora que veem nossos passos como positivos, muitos irmãos estão se juntando a nós”, conta à BBC News Mundo enquanto viaja em um carro dirigido por um desses “irmãos” da universidade até seu bairro, em um trajeto com quase uma hora de duração.
No início, apenas 20 “pandilleros” decidiram “se legalizar”. Agora, eles são mais de mil, com origem nos Latin Kings e também em outras gangues.
A pesquisadora Ana Rodríguez conta que o modelo funcionou e conseguiu se expandir até mesmo em direção às gangues inimigas dos Latin Kings.
“Uma das principais dificuldades foi mudar a imagem dos ‘pandilleros’, mas esse signo foi mudado.”
O relatório “Inclusão social de baixo: As pandillas de rua e seus possíveis efeitos na redução da taxa de homicídios no Equador”, do BID, também destaca as conquistas do programa – iniciado em 2007.
“Descobrimos que a legalização desses grupos ajudou a reduzir drasticamente a violência e o crime e, ao mesmo tempo, garantiu um espaço cultural e legal para transformar o capital social das gangues em meios eficazes para alcançar uma mudança de comportamento”, destaca o relatório.
A empresa
Manuel anda com seus “irmãos” pelos corredores da Universidade Católica de Quito.
É 30 de outubro, e o Kings Catering tem dois importantes serviços a oferecer: um almoço dos decanos da instituição e outro do conselho das universidades equatorianas.
Ninguém se surpreende ao ver que jovens com várias tatuagens nos braços, camisetas estampadas e longos colares preparam e servem comida: no menu do dia, arroz pesto com frango recheado.
Para Manuel, uma das maiores conquistas na década foi a superação do estigma que os cercava.
A socióloga Alejandra Delgado, coordenadora do programa de inclusão dos “pandilleros” da Universidade Católica, combina suas aulas com o trabalho ao lado dos “reis e rainhas latinos”. O grau de confiança que ela construiu com o grupo é notável.
Os Latin Kings não trabalham apenas no serviço gastronômico como também recebem treinamento técnico em áreas como serigrafia e informática. Os entes envolvidos buscam projetos que funcionem a longo prazo e gerem empreendimentos próprios.
Luis Enrique, um dos “pandilleros”, tornou-se recentemente o primeiro do grupo a cursar Sociologia na universidade. Ele frequenta as aulas com quase uma dúzia de colares, tatuagens nos braços e uma camiseta com os símbolos de sua “nação”.

Os percalços
Apesar dos resultados celebrados, porém, a legalização das gangues não foi capaz de erradicar a violência entre grupos de jovens no Equador.
E embora o general de polícia Patricio Carrillo, agora parte do Ministério do Interior equatoriano, reconheça as conquistas do programa, ele também alerta para as dificuldades atuais de sua manutenção.
Membros do governo reconhecem que o surgimento de novos grupos violentos não legalizados e o cenário econômico atual, de queda na renda dos equatorianos, dificulta o apoio aos “pandilleros”.
Para Carrillo, a redução da violência no país não passa apenas pelo trabalho com as organizações juvenis mas também pela aproximação entre a polícia e as comunidades, subdivididas em áreas de atuação dos agentes de segurança.
Lições
Curiosamente, as conquistas da experiência equatoriana não parecem ter chamado a atenção de outros países latino-americanos.
Para especialistas consultados pela BBC News Mundo, a experiência é pouco conhecida e há resistência em países próximos, como El Salvador, a uma eventual alocação de recursos públicos para membros de gangues.
“É preciso implementar uma mudança estrutural, não só do governo, mas também da polícia – como aconteceu no Equador”, defende Rafael Gude, pesquisador do BID que trabalhou com “pandillas” no Equador e na América Central.
A socióloga Ana Rodríguez afirma que o processo equatoriano deveria ser replicado em outros países – mudando a abordagem “criminalizadora” dos membros de gangues.
“É muito difícil que isso seja alcançado se os governos continuarem atribuindo a culpa pelos problemas em suas ruas às organizações de jovens. Eles (os governos) devem reconhecer que a violência é produto da desigualdade, e não das gangues.”
Para ela, os Estados com problemas de violência mostram a repressão contra as gangues como uma conquista, apesar da evidente ineficiência dessa política na redução de homicídios.
A opinião da sociólogia encontra semelhanças com a de Manuel Zúñiga, presidente dos Latin Kings, que expressa desejar que “irmãos” em outros países sigam o mesmo caminho de sua “nação” e possam andar com suas tatuagens e camisetas pretas com coroa dourada sem dificuldades nos corredores de universidades e órgãos governamentais.
Fontes: Sites BBC Brasil News e Jornal O Povo
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