Dizem que os melhores filmes são aqueles que nos fazem refletir por dias e dias depois depois que o assistimos. Esse, sem dúvida, é o caso de Roma do diretor mexicano Alfonso Cuarón. A produção fez história tornando- se a primeira obra mexicana a ganhar a estatueta de “melhor filme estrangeiro” no Oscar. Cuarón já havia levado o troféu antes na categoria “melhor diretor” pelo trabalho em Gravidade de 2014.
Mas antes mesmo de levar esses dois importantes trofeús, Roma já havia feito história meses antes se tornando a primeira obra em espanhol a ser indicada ao prêmio de ‘melhor filme’. Foi também a primeira produção de um serviço de streaming a ser indicado para a maior festa do cinema mundial, além de ter sido a primeira vez que uma indígena mexicana foi indicada na categoria de melhor atriz. Outro fato inédito foi a indicação para o prêmio de “melhor diretor” e “melhor roteirista” para a mesma pessoa, no caso Cuarón.
A obra realmente mereceu toda essa atenção e reconhecimento. O diretor conseguiu, através da história de Cleo, uma empregada doméstica indígena que trabalha para uma família branca, abordar pontos obscuros da sociedade mexicana: como o machismo, a miséria, desigualdade e injustiças sociais e raciais de seu país. Incrível pensar como a história de alguém que era tratado particularmente como um ser invisível para a maioria das pessoas que a cercavam, pode ser uma fonte tão rica de reflexão e de compreensão do funcionamento de uma sociedade.
Grande parte da força do filme vem da interpretação de Yalitzia Aparicio, que dá vida à Cleo. Ela nasceu no interior de Oaxaca, no sul do México, onde até pouco tempo atrás dava aulas para crianças da pré-escola. Seu papel em Roma, impressionantemente foi seu primeiro trabalho como atriz — e foi excepcional, diga-se de passagem.
Gravado em preto e branco, Roma traz imagens completamente diferentes do que estamos acostumados hoje em dia. A atenção de Cuarón para os detalhes do figurino e dos cenários e as longas cenas em plano-sequência garantem imagens lindas e emocionantes. Um ótimo exemplo — sem detalhes para não estragar a surpresa — é uma cena inteira que se passa no mar e consegue acelerar o coração do espectador. Não à toa, a Netflix também exibiu o longa em salas de cinema, pois uma obra de arte dessas também merece ser assistida nas telonas.
Por que “Roma”?
O título do filme é o nome do bairro onde a trama se desenrola, Colonia Roma, uma zona em que a classe alta mexicana se estabeleceu na primeira década do século 20 e onde existem até hoje suntuosas mansões e palacetes de inspiração europeia. Desde o terremoto de 1985, a região passou por várias transformações arquitetônicas e demográficas, ainda que atualmente continue a ser um bairro de classe média e uma das zonas residenciais mais emblemáticas da cidade. Mas o motivo pelo qual o filme se passa ali tem a ver com a intenção do diretor de recriar sua infância: Cuarón cresceu em uma casa na rua Tepeji, em Roma, que aparece em uma das cenas do longa.
O luxuoso bairro serve também como um símbolo para contrastar com as diferenças sociais de outros ambientes pelos quais passam os personagens, em especial Cleo, a protagonista. Diferentemente de seus patrões, ela e outra amiga, que também trabalha como empregada doméstica na mesma casa, dormem em um quarto minúsculo, enquanto os namorados de ambas vivem em um bairro muito pobre e distante dali.
Homenagem
Cuarón dedica o filme a “Libo”, que é como ele e sua família chamam Liboria Rodríguez, uma mulher de origem indígena que começou a trabalhar com eles quando o diretor tinha só 9 meses e cuja história de vida serve de base para a história. Rodríguez, que veio da aldeia de Tepelmeme no Estado de Oaxaca, cuidou desde então das crianças da família de Cuarón, como muitas empregadas domésticas que tiveram um papel central na vida dos filhos de muitas famílias da América Latina.
Aviões
Em vez de usar estúdios de filmagens, Cuarón decidiu rodar seu longa em uma casa em Roma, que foi reconfigurada meticulosamente para que se parecesse com o local onde cresceu. Roma fica próximo de um dos corredores aéreos pelo qual passam centenas de aviões que cruzam diariamente os céus da Cidade do México para aterrissar em seu aeroporto internacional, por isso, são uma presença constante no céu do bairro… e de quase toda a cidade.
Por isso, os aviões não estão apenas na abertura e no encerremento do longa, mas seu som permeia todo o desenrolar da trama. Mas isso é apenas uma parte da explicação. Há também um fato autobiográfico: Cuarón era fascinado por aviões e sonhava em ser piloto quando era pequeno (o ator que interpreta o diretor quando criança conta isso a sua babá). Além disso, há uma conotação simbólica. Cuarón contou que as aeronaves cruzando o céu do México transmitem a ideia de que as situações que os personagens atravessavam são transitórias e que há um universo que vai além de seus contextos pessoais.

Metalinguagem
As idas ao cinema não são apenas uma válvula de escape de Cleo para suas tarefas domésticas, mas também para as crianças de que ela cuida. Roma utiliza um recurso narrativo conhecido como “metarrelato”, ou “cinema dentro do cinema”, em que produções cinematográficas anteriores são homenageadas pelo autor – inclusive, algumas próprias. Em uma das cenas, as crianças vão com a babá ver Sem Rumo no Espaço (1969), um dos filmes favoritos do diretor quando criança e que lhe serviu de inspiração para Gravidade.
Há uma cena de parto similar à que ocorre no filme de Cuarón Filhos da Esperança (2006), e, como em E Sua Mãe Também (2001), dirigido por ele, a mãe conta aos filhos em um bar ao ar livre próximo da praia que seu pai os abandonou. Nos créditos de Roma, aparece o mantra “Shantih Shantih Shantih” (Paz, paz, paz), que também aparece em Filhos da Esperança.
Massacre
Um dos elementos que a crítica mais tem aclamado é a cuidadosa recriação de época, não apenas pelos cenários, vestuários e programas de televisão, mas pela forma tangencial com que apresenta contextos sociais do México nos anos 1970. Uma das cenas mais dramáticas mostra a matança de estudantes conhecida como o massacre de Corpus Christi ou “Halconazo“, que ocorreu em 10 de junho de 1971 e que ainda é hoje um dos eventos mais tristes da história do país. O incidente começou como um protesto estudantil pela libertação de presos políticos e por mais investimentos em educação, e terminou como um banho de sangue quando o governo enviou soldados treinados pela CIA, de um grupo paramilitar financiado pelo Estado e conhecido como Los Halcones, para reprimi-los.
De acordo com versões de alguns sobreviventes, a princípio, os paramilitares usaram bastões e varas de bambu empregados na arte marcial japonesa kendo, como o usado por um dos personagens do filme em seu treinamento, mas, depois, foram usadas armas de fogo. O fato do namorado de Cleo praticar o kendo em um local distante no Estado do México e se referir aos treinamentos também deixa em aberto uma possível referência aos grupos paramilitares. O massacre de Corpus Christi deixou 120 estudantes mortos, de acordo com registros oficiais, mas acredita-se que o número de vítimas possa ter sido ainda maior. O acontecimento é retratado de forma hiper-realista no filme em uma das suas cenas mais comoventes, na qual novamente as desigualdades sociais marcam o desenrolar da trama.
Pra quem curte uma obra intimista, realista e puramente “humana” Roma é realmente indispensável!
Segue abaixo um vídeo com uma ótima crítica pra deixar você com ainda mais vontade de conferir essa obra prima de Cuarón:
Fontes: Sites BBC Brasil e Guia da Semana
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