O futebol nasceu na Inglaterra, mas se naturalizou brasileiro

No apagar das luzes do ano de 2022, nosso Rei nos deixou. Pelé que virou adjetivo de excelência há muitas décadas, estará sempre vivo no coração de todo aquele que ama o futebol como arte e não apenas como um esporte. A maioria de nós, não teve o privilégio de ver a estrela de Pelé brilhar ao vivo nos gramados, mas quem teve essa chance, jamais esqueceu e foi marcado pela aura de sua Majestade. Hoje é fácil falar da realeza de Pelé, afinal ele é o único jogador a ganhar 03 Copas do Mundo, além de ter sido eleito o atleta do século, mas imagina reconhecer sua Graça quando ele tinha apenas 17 anos e nenhum Mundial no currículo? Pois foi exatamente isso, que outro gênio brasileiro, o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, fez em março de 1958. Em um texto profético, Nelson descreveu Pelé como um rei, após vê-lo jogar pelo Santos contra o América do Rio. Escolhido como personagem da sua crônica semanal, o escritor antecipou o que todos descobririam no futuro: Pelé não era apenas mais um craque em formação, ele era um mágico com a bola nos pés, um sol a brilhar com toda sua esplendorosa majestade. Alguns, que leram a crônica na época, podem ter achado que Nelson estava emocionado demais, porém, hoje em dia, sabemos que ele estava coberto de razão. Obrigada por tudo Rei! Descanse em Paz Edson, nascido para brilhar assim como o inventor da lâmpada; e vida longa ao legado do Pelé Eterno!

Confira abaixo o texto com a profecia do mestre Rodrigues:

A realeza de Pelé – Nelson Rodrigues

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O escritor Nelson Rodrigues, apaixonado por futebol, foi pioneiro em reconhecer a majestade de Pelé – Foto – Google Imagens

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo.

Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

Manchete Esportiva, 8 de março de 1958.

Fontes: folhavitoria.com.br, Canal: Leonardo Guerreiro – Youtube e Getty Images

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